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“Contos”, de Eça de Queiroz

A obra incluí, de entre outros contos, No MoinhoeSingularidades de uma Rapariga Loira, de Eça de Queiroz

Eça de Queiroz foi não só um importante membro da alta sociedade do século XIX como político, mas também como escritor, sendo considerado dos mais importantes Realistas e Romancistas da Literatura Europeia. Eça de Queiroz nunca editou os seus contos, vindo, mais tarde, o seu grande amigo Luís Magalhães reunir os textos e compilá-los num só volume.

Sobre os contos de Eça de Queiroz, sabe-se que os escrevia esporadicamente, normalmente com base em pequenos detalhes da sua vida quotidiana ou das viagens que fazia – em “Singularidades de uma Rapariga Loira”, o autor foi inspirado por um leque chinês que adquiriu numa viagem a Macau, cidade onde também adquiriu um manto que o inspirou a escreveu “O Mandarim”. Eça de Queiroz deixou um vasto espólio de anotações do Egipto, Ceuta, Macau, França, bem como diários verídicos de situações da realidade que inspiravam os seus romances – sobre o realismo nos seus trabalhos, chegou a haver um grande alarido em Leiria, no tempo do autor, para descobrir quem eram os homólogos na vida real das personagens de “O Crime do Padre Amaro”.

Ambos os contos (“No Moinho” e “Singularidades de uma Rapariga Loira”), à boa maneira de Eça de Queiroz, retratam “pequenos grandes escândalos” da sociedade da sua altura – amores proibidos em ambos. “No Moinho” é assim intitulado por o ponto alto do conto, quando o amor proibido das personagens principais é consumado, se passar no moinho da localidade em que tudo acontece. “Singularidades de uma Rapariga Loira” refere-se às qualidades “singulares” da rapariga por que o personagem principal se apaixona.

No Moinho” segue a história da mulher-modelo, Dona Maria da Piedade, uma belíssima jovem presa a um casamento infeliz com um homem velho e três filhos doentes. Todos os dias as pessoas da vila a vêem bordar todas as tardes com a mesma cara abatida, e veneram a devoção que Maria tem ao seu matrimónio. Porém, um dia, o primo do seu marido, Adrião, vem à vila, e Maria da piedade vê-se presa num conflito entre o dever e os sentimentos, deixando-se vencer pelo amor refugiada no velho moinho com o jovem Adrião.

Singularidades de uma Rapariga Loira” é o relato de Macário a um homem que conhece numa estalagem. Macário conta-lhe como a sua vida mudou por completo após ter encontrado uma rapariga da varanda do seu escritório de “guarda-livros”, de contabilista. Macário conhece a rapariga em vários encontros, e passa a querer casar-se com ela, mas o casamento não é permitido pelo tio para quem trabalha em Lisboa, abandonando ele o seu emprego e arranjando e perdendo fortunas em múltiplos negócios, tudo para que pudesse eventualmente garantir o sustento dele e de Luísa, para se casarem de vez. Entretanto, o seu tio perdoa-o e volta a acolhê-lo, mas, no fim, Macário e Luísa voltam a ficar separados.

O narrador, em “No Moinho”, é Heterodiegético, não participando na história, mas já em “Singularidades de uma Rapariga Loira”, o narrador é um qualquer estranho a que Macário se dirige para relatar a sua história, podendo até se entender esse estranho como o próprio autor, Eça de Queiroz, que, nesse caso, será uma personagem secundária do conto, logo Homodiegético. Em ambos os casos, o narrador é Observador, de focalização interna, adoptando o ponto de vista da personagem principal, Maria da Piedade ou Macário; e Subjectivo, apresentando comentários e anotações tipicamente queirosianos, com inúmeras alusões a aspectos religiosos, políticos ou de qualquer outra natureza social que envolve o leitor num profundo emaranhado de informações fictícias e reais – o que sustenta as ficções de Eça de Queiroz nos limiares da realidade.

As personagens principais dos dois contos, por norma, são modeladas, sofrendo mudanças que lhes causam as suas histórias de vida, mas sempre num ciclo de eventos que as leva de novo à sua origem – D. Maria da Piedade passa de modelo de virtude a mulher sem moral, mas continuando a servir a família; Macário passa de apaixonado a traído, mas começando e terminando o seu conto sob a alçada do tio. Das demais personagens que surgem nada mais se sabe além do essencial para o desenvolvimento do enredo, logo, personagens Planas, como o joalheiro, ou, por vezes, personagens-Tipo, como o tabelião da Rua dos Calafates – o típico velho erudito ocupado com as festas e entreténs com os seus iguais abastados, que acabavam guardando para si a música erudita, a literatura, os teatros e óperas e outras extravagâncias culturais privadas – ambos personagens de “Singularidades de uma Rapariga Loira”. A caracterização das várias personagens passa, normalmente, pela primeira descrição genérica de características reconhecidas por outros na imagem que a personagem dá – Heterocaracterização. Uma mais aprofundada caracterização é apresentada ao longo do conto, transmitida pelas acções que a personagem toma – Caracterização Indirecta.

A acção em si, dos dois contos, concentra-se nas vivências conturbadas de membros da burguesia, de proprietários ricos que comporiam a nata, a elite da alta sociedade portuguesa, mas que ainda assim se envolvem nos labirintos mundanos das tramas amorosas.

A estrutura na intriga é extraordinária apenas em “Singularidades de uma Rapariga Loira”, havendo o encaixe de uma narrativa (a dos eventos de Macário) numa outra (o encontro do narrador com Macário).

Em “No Moinho”, o Espaço e o Tempo não são especificados, apenas se referindo que o conto se passa numa vila rural, talvez no tempo de vida do autor. Já em “Singularidades de uma Rapariga Loira”, várias referencias espaciais são feitas, já que o narrador encontra Macário numa estalagem no Minho, o próprio Macário tendo vindo de Vila Real e trabalhado com o tio em Lisboa, em 1823 ou 33 – logo, as referências temporais, mesmo algo vagas, existem.

Em ambos os trabalhos, as marcas do estilo queirosiano surgem, desde o realismo das histórias às figuras de estilo , como a hipálage (“… seus cabelos violentos e ásperos…”) ou a sinestesia (“…frescura da verdura…”), a adjectivação dupla ou até tripla (“…movimento sôfrego apaixonado…”), as alusões que faz (“Era um recanto de natureza, digno de Corot…”) entre outras.

Eça de Queiroz deixou uma grande obra literária que o tornou no grande vulto da cultura portuguesa e da literatura europeia que é. Foi um erudito, um político activo e uma personalidade cultural de grande respeito entre demais do Portugal e da Europa do seu tempo (Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Émile Zola…). Cosmopolita, cultivava amizades e contactos com inúmeros homens e mulheres de cultura, sendo interessado por pintura e música, ciências, política, misticismo, religião. Viajou por muitos locais e participou em grandes eventos, como a inauguração do Canal do Suez. Coleccionava itens e registava detalhes de todas as suas excursões e reuniões em pequenos cartões, que ainda podem ser vistos na sua casa-museu, em Torges – pormenores que o inspiravam nos seus trabalhos escritos, que produzia meramente por prazer e criatividade, ao contrario, por exemplo, do seu contemporâneo Camilo Castelo Branco, que vivia dos seus vastos escritos.